Sobre a transcendência da Monarquia republicanizada como guardiã da memória colectiva de um povo


Neste centenário de República, dramaticamente mutilada de Monarquia, sabe-me a oráculo o pensamento de José Ortega y Gasset (1883/1955).

Diz-se que há muito a Monarquia inglesa é uma instituição meramente simbólica. Isso é verdade, mas dizendo-o assim deixamos escapar o melhor. Porque, efectivamente, a Monarquia não exerce no Império britânico nenhuma função material e palpável. Seu papel não é governar, nem administrar a justiça, nem mandar o Exército. Mas nem por isso é uma instituição vazia, carente de serviço. A Monarquia da Inglaterra exerce uma função determinadíssima e de alta eficácia: a de simbolizar. Por isso o povo inglês, com deliberado propósito, deu agora inusitada solenidade ao rito da coroação. Antes a turbulência actual do continente quis afirmar as normas permanentes que regulam sua vida. Deu-nos mais uma lição.
O inglês faz empenho de nos fazer constar que seu passado, precisamente porque passou, porque lhe passou, continua existindo para ele. Desde um futuro ao qual não chegamos mostra-nos a vigência louça de seu pretérito. Este povo circula por todo o seu tempo, é verdadeiramente senhor de seus séculos, que conserva em activa posse. E isto ser um povo de homens: poder hoje continuar no seu ontem sem por isso deixar de viver para o futuro, poder existir no verdadeiro presente, já que o presente é só a presença do passado e do porvir, o lugar onde pretérito e futuro efectivamente existem.
Com as festas simbólicas da coroação, a Inglaterra opôs mais uma vez, ao método revolucionário o método da continuidade, o único que pode evitar na marcha das coisas humanas esse aspecto patológico que faz história uma luta ilustre e perene entre paralíticos e epilépticos.

José Ortega y Gasset in Rebelião de Massas