Nota: CAMEL - Música For Today do Álbum A Nod And a Wink (2002)
Estão na moda, por motivos iminentemente mediáticos, os “casos de justiça”, que envolvem o apuramento da verdade. Uma pessoa verdadeira é, antes de mais, alguém simples, transparente e rápida a interpretar ou a contar um acontecimento. Aristóteles (384/322 ac) de forma sintética deixou esta feliz definição: “É próprio da verdade que cada um diga de si mesmo, nem de mais nem de menos”. A verdade é uma composição de veracidade com sinceridade. No fundo ela desenvolve-se com a Humildade.
A verdade pode ser negada por diversas vias. Ou melhor dizendo, por se tratar de uma capacidade humana, quem não é verdadeiro pode ser mentiroso, simulador, hipócrita ou jactante. Habitualmente os mais rústicos são simplesmente mentirosos, os mais dotados desenvolveram proezas nos escalões mais elevados.
Faltar à verdade é frequente em situações em que se omite, se exagera, se inventa numa base possível como o boato. Muitas vezes os envolvidos no seu uso têm inseguranças variadas, receios das consequências de se ser verdadeiro. Nestas situações não se é imparcial, sincero, mas pode não ser produzida uma falsidade, não existem vítimas molestadas pelo seu comportamento. Aqui existe uma divergência notória no pensamento ocidental entre Immanuel Kant (1724/1804) e Bento/Baruch de Espinosa (1632/1677). Eu aproximo-me, neste particular da mentira, mais de Espinosa, mas se tivesse a meditar sobre a humildade a minha inclinação seria kantiana.
Na “verdade” a “mentira” pode ser necessária. Desde muito novo me marcou um episódio que a minha irmã mais velha me contava, relativa ao seu orientador de doutoramento, o psicanalista e professor universitário parisiense Serge Lebovisi (1915/2000). Dizia ele que o seu pai quando foi surpreendido pela Gestapo estando acompanhado pela mulher, ao ser interrogado e antes de ser levado sem mais voltar, indicou estar acompanhado por uma amante. Com a mentira salvou a mulher? Se fosse totalmente verdadeiro tinha-a condenado? Este é o sentido correcto dado por Espinosa que face à sobrevivência, à resistência não tem dúvida que mentir é legítimo até porque veracidade não é ingenuidade. Para Kant a verdade é uma realidade absoluta, válida em qualquer circunstância, inteiramente incondicional. No limite fica-se com a ideia que se albergarmos um amigo, injustamente perseguido, se perguntarem por ele teríamos a obrigação de o denunciar para não faltar à verdade.
O maior dano da mentira reside nos seus efeitos colaterais onde facilmente existem vítimas e acumulam-se prejuízos. Como, precisamente, é quase impossível mentir-mos em estado de inocência é que esta deve ser evitada ou banida da nossa conduta. Jacques Rousseau (1712/1778) filósofo que, habitualmente, não é presença na minha mesa-de-cabeceira, afirma assertivamente: “Proferir afirmações falsas só é mentir quando existe intenção de enganar, e mesmo essa intenção, longe de se aliar sempre à de prejudicar, tem por vezes um objectivo oposto. Todavia, para tornar inocente uma mentira, não basta que a intenção de prejudicar não seja expressa, é necessário também ter a certeza de que o erro em que se induz aqueles a quem se fala não poderá prejudicá-los a eles nem a ninguém, seja de que maneira for. É raro e difícil ter-se essa certeza e, por isso, é difícil e raro que uma mentira seja perfeitamente inocente”.
Quando alguém que mente tem capacidade de fingir, disfarçar e ocultar é um dissimulador. Por isso dissimular é um refinamento da mentira. É uma subtil mentira onde não se deixa aparecer ou manifestar a verdade, capacidade de encobrir, Voltaire (1694/177) terá dito que dissimular é a virtude “do Rei e da Camareira”.
A hipocrisia está, ainda, num patamar superior, porque só um grupo reduzido de pessoas mentirosas e dissimuladoras conseguem aparentar, representando papéis fingindo o que se é, o que se sabe ou o que se tem. Só quem se sabe conduzir como “actor” consegue fingir tal coisa, por isso é que hipócrita não é mais do que “actor” em Grego "hupokrisis” ou em latim "hypocrisis".
Na posse de dotes retirados da mentira, da dissimulação e da hipocrisia só resta o domínio da jactância. O jactante é normalmente arrogante, suficientemente inteligente para no relacionamento externo, genérico apresentar-se como humilde e na intimidade gabarola. A jactância é o estado por excelência do homem público com sucesso nas sociedades actuais a caminho da fragmentação social e falência financeira. Normalmente começou a sua vida pública como vanguardista dos descamisados, oprimidos e marginalizados - o número de ex-sindicalistas e membros de formações partidárias tidas como defensoras dos explorados é numeroso - para acabar em cargos desproporcionados no tocante a remunerações e privilégios, responsáveis por um agravamento das desigualdades sociais que, na denúncia passada, estiveram na base da sua ascensão social. Outros correligionários, em rotativismo potestativo, apenas por inveja de não terem atingido tal projecção, na maior parte das vezes não abandonando a ideia de que lá chegarão, fazem o papel de denunciadores com o conceito moralista de “escândalo” utilizado em proporções que, no universo Teológico antes das “reformas”, se descrevia como “bradando aos Céus”.
No meio disto tenho pena e receio das vivências actuais que percorrem todas as sociedades, conduzidas mais pela jactância do que pela mentira. Um mentiroso apanha-se sempre, um jactante nem sempre. Para apanhar o mentiroso, que normalmente tem a patologia que é dissimulador, hipócrita e jactante sem o ser, basta alimentar o seu narcisismo. Dizia Arthur Schopenhauer (1788/1860) sobre a estratégia de apanhar uma mentira: “Se desconfiarmos que alguém mente, finjamos crença: ele há-de tornar-se ousado, mentirá com mais vigor, sendo desmascarado”. Problema mesmo é que não temos a sorte de, apenas, convivermos com mentirosos.